Meu
nome é Sara Jéssica Packer. Há 16 anos estou nesta casa onde sou
muito amada por todos, inclusive pelo meu papai que mora fora, mas
que não se esquece de mim. Mas nem sempre foi assim – meu antigo
dono soltou-me na rua sem dó nem piedade. Eu era ainda muito pequena
e portanto indefesa; estava perambulando pela rua sem destino quando
os donos desta casa me salvaram de uns malvados que estavam atirando
pedras em mim. Desde
então acompanho tudo de perto o que acontece por aqui.
Vamos
começar pelo dono da casa, Francisco. Ele é um senhor muito bom,
adora animais e nos trata com muito carinho – a mim e a mais oito,
que pela bondade dele estão aqui. Confesso que agora que estou com a
idade avançada tenho minhas limitações, só fico no sofá da sala
de visitas, o lugar lugar mais bonito da casa, e agrado as pessoas
que gosto muito. Por exemplo, o Dalizio – Cover do Elvis – é meu
amigo; sempre que nos visita, batemos longos papos até de madrugada.
Minha
comida preferida é filé mignon e às vezes como de sobremesa
beijinho de coco, feito pela minha amiga e tia Mariana. É ela quem
me leva ao médico e me dá remédios na hora certa, apesar de eu não
gostar muito: faço cara feia para ela e toco a boca no trombone, mas
sei que é para o meu bem. No dia seguinte faço as pazes com ela,
pois sei que é uma pessoa muito querida, sempre pronta para nos
ajudar e aos seres humanos também.
Não fui uma boa mãe. Mas concordem comigo: sessenta filhotes é dose! Graças a Deus uma boa alma me operou, pois aguentar essa criançada aprontando dia e noite não foi fácil.
O
caçula da casa, o Glauco, é muito meu amigo e sempre está me
fazendo carinho. Adoro ele, pois é muito amoroso conosco. No Natal
passado ele trouxe uma garotinha para cá, a Belsy, que ele escolheu
entre vários irmãos. Era a mais fraca e feinha, mas foi paixão à
primeira vista. Hoje ela está com dez meses e ficou uma gatinha
muito linda com seus pelos pretos brilhantes – parece uma pantera.
Aqui
somos seis gatas: eu, a Solitaire, Chocolate, Rebeca, Emilie e Belsy,
também conhecida como Picoca. Os machos são Didier, Manolo e Petty.
A
Solitaire está velha como eu; acho que é um pouco mais nova, mas
está bem acabada. Só dorme o dia inteiro e faz xixi em qualquer
lugar – acho mesmo que está caduca. Nem parece aquela moça forte
e bonita que segundo a mãe dela e minha tia Mariana, saía vender
Avon e só voltava à noite; hoje está tão relaxada que nem penteia
mais os cabelos. Eu não! Procuro sempre andar à la froche, como
dizia o avô das crianças da casa, ainda mais que ajudo a receber as
visitas importantes.
Alguns
dias atrás esteve aqui uma prima da dona da casa, Natalina. Foi
muito legal: além do bom astral, ela energizou o meu pescoço. Ouvi
dizer que estou com câncer. Confesso que incomoda um pouco para eu
engolir, mas como não sei o que é isso e eu creio num Deus Poderoso
que cura todas as nossas feridas, então por que vou me preocupar?
Voltando à prima, procuro ficar no lugar que ela sentou, pois assim
continuo captando todas as boas energias que ela deixou aqui.
Confesso
que não me dou bem com os demais gatos que aqui moram. Quando
cheguei, eu era a rainha da casa, tinha liberdade para usar todos os
cômodos. Hoje tenho minhas restrições, pois esses jovens de agora
são muito rebeldes, estão com sangue quente nas veias e qualquer
motivo serve para briga: de vez em sempre sai cada arranca rabo que é
só pelos que voam. Agora mesmo tem um gato gordo branco em cima da
mesa, de medo que o outro bata nele. E é assim o dia todo.
Como
eu não sou babá, fico aqui no sofá só assistindo, não me misturo
com essa gataiada ralé (estou falando dos encrenqueiros...). A
Rebeca nasceu aqui, é do signo de Capricórnio (nasceu em 01.01)...o
ano ao certo não me lembro. Ela tem mais dois irmãos que são
terríveis, por isso só fica no quarto dos donos, com direito a
suíte e tudo. O quarto dela é o maior da casa – tem até banheira
com hidromassagem! Não sei se ela usa, porque gato não gosta de
banho, mas tudo bem. Ela é uma verdadeira dama. Está um pouco fora
do peso, mas isso é outra coisa, não compete a mim ficar julgando.
A
Chocolate é filha do caçula. Aliás, como esse menino gosta das
fêmeas. A Chocolate tem um gênio muito forte, não se dá com
ninguém, gosta de ficar no quintal vendo quem entra e quem sai, não
faz questão de enturmar-se. Dia desses chegou aqui um pequenino que,
como sempre acontece, os seres humanos (que até tenho minhas dúvidas
se são humanos mesmo) jogam na rua. A Mariana o trouxe para casa
muito fraco e doente, precisou até tomar soro, pois estava sem comer
há dias. De cara nos apaixonamos pelo filhote, que foi batizada com
o nome de Dolores Botafogo, uma excelente chefe de cozinha do século
passado. Seu apelido era Lolita. Mas o tempo foi passando e
percebemos o grande engano, pois apesar de possuir três cores,
Lolita era um menino. Daí a necessidade de mudar o nome para Manolo.
Pelo que parece é um gato espanhol, escuto sua dona o chamar de El
Niño.
Por
falar em outros idiomas, meu pai Saulo fala dois fluentemente. Às
vezes conversa comigo em alemão, faço de conta que entendo, só
para não perder a amizade. Sinto muito a falta dele. Adoro quando
ele vem, pois durmo ao seu lado todas as noites para matar as
saudades. A dona da casa sente muito a ausência dele, e todas as
noites ela pede a Deus para unir a nossa família de novo e eu também
oro com ela, só que ela não sabe.
Eu e meu papai |
A dona
da casa pegou a mania de escrever, parece que tem até um blog onde
posta suas crônicas. Tem gente até da Europa lendo os textos dela!
Pois
então, hoje ela está escrevendo sobre mim e a minha vida aqui nesta
casa, mas já enfiou um monte de gatos no meio...mas tudo bem. Eles
também fazem parte, isso aqui virou uma “Gatolândia”.
Gosto
muito da dona da casa, Natalina. Ainda mais quando ela coloca o MP3
do Elvis para eu ficar ouvindo. Como ela, também adoro as músicas
do Elvis, e para mim é um prazer ouvir essas melodias tão doces do
Rei do Rock. Nisso estou com ela e não abro!
Sei
que a menina vai trabalhar na televisão como Chef de Gastronomia. As
reuniões acontecem sempre à noite aqui na sala. Gosto de ver as
pessoas ao redor da mesa comendo e conversando sempre muito alegres,
ainda mais depois de uma taça de vinho. Ontem foi um dia muito
especial, pois a Mariana participou do programa do Alex Ruivo, que
vai ao ar às sextas-feiras...tomara que o dona da casa coloque para
eu assistir! Pelo que vejo ele é vidrado em séries americanas. E
como gosta de TV! Amanhece todas as noites na frente dela. Tem hora
que dorme e até posso ouvir seu ronco. A dona da casa chama ele
várias vezes e ele não atende...parece até que está morto.
Felizmente, depois de muito tempo ele acorda, para nossa alegria
(aleluia!). Nesses anos todos que moro aqui já tivemos muitos gatos,
mas um que marcou muito foi o Mozart, um gato de raça que a menina
Mariana ganhou de sua tia. Ele era muito bonito, branco de pelos
longos e olhos azuis (era um gato mesmo!). Mas ele tinha um
probleminha: era muito baladeiro! Uma vez fecharam todas as portas
para ele não sair, mas mesmo assim deu um jeito e pulou a janela com
mais de três metros de altura. Quando arrumaram uma companheira para
ele, a Lili, foi amor à primeira vista. Ele ficou bobão. Tiveram
cinco lindos filhotes. Com o passar do tempo, a Lili já não estava
mais tão carinhosa com o Mozart e um belo dia se mandou. Mas como
ele era da balada, nem deu bola. Até que resolveram operá-lo, para
ver se baixava um pouco o facho. Ledo engano! Continuou do mesmo
jeito, com exceção de quando pegou uma infecção urinária, que
quase o matou.
Quando
os três filhos da dona da casa foram morar fora, ele ficou mais
amigo dela. Era seu companheiro nas madrugadas que ela ficava
acordada com saudades dos filhos, muitas vezes sentava-se em seu
colo e ouvia ela chorar em silêncio, sempre pertinho dela, como se
entendesse o que estava acontecendo. Um certo dia ele sumiu, e nós
pensamos que ele estava namorando alguma gatinha nova, mas como
estava demorando muito a voltar, começamos a procurá-lo. Depois de
alguns dias, soubemos que o Momô não estava mais conosco (Momô era
seu apelido). São as perdas que temos ao longo da vida. O mundo dos
animais não é diferente dos humanos – temos também sentimentos,
só que não demonstramos.
Agora
vou falar um pouco do meu pai. É um cara muito bom e inteligente. Já
viajou para fora do Brasil três vezes; a primeira foi para a
Alemanha: ficou um mês e conheceu todos os lugares lindos por lá. A
segunda foi o Japão e também adorou. Voltou encantado com a
educação e cultura daquele povo. E a mais recente foi para conhecer
a Europa. Passou por onze países, inclusive a Espanha, onde nasceu o
seu avô paterno. Teve a oportunidade de conhecer a igreja em que
seus familiares foram batizados e também visitar uns primos que
ainda moram lá.
Há
dois anos atrás nasceu aqui um cachorro, filhote de um casal de
vira-latas que os donos da casa colocaram aqui dentro. O nome dele é
Pedro Paulo. Eu particularmente não gosto de cães, acho eles muito
atrevidos, mas a Solitaire é a maior amiga dele – passa o dia todo
sentada no banco do jardim da casa vendo as suas tontices, pois ele
late para todos que passam pela rua...é um atrapalhado!
A vida
continua apesar de eu estar doente, observo do sofá tudo o que
acontece na casa, pois todos passam por lá. O caçula está fazendo
autoescola para aprender a dirigir; demorou um pouco porque há
alguns anos ele fez transplante de córnea em ambos os olhos. Agora
ele já se recuperou, mas na época foi muito difícil, quando estava
perdendo a visão. A doença chamava-se ceratocone. Muitas pessoas
sofrem desse mal. A dona Natalina é muito grata às duas pessoas que
doaram as córneas, sempre pede a Deus por essas almas abençoadas
que aparecem em nossas vidas. A Mariana também já passou por uma
cirurgia na garganta. Segundo o médico, era para serem gêmeas. Meu
Deus! Se uma já é maravilhosa, imaginem como seriam duas! E o meu
papai Saulo também fez uma cirurgia no estômago por causa de um
refluxo que judiou muito dele. Agora graças a Deus ele está ótimo.
Eu também passei por uma cirurgia, mas foi para não ter mais
gatos...perdi a conta, mas acho que tive mais de sessenta. Se não
operasse, acho que ia povoar o mundo de gatos...rs.
Pois
bem, acabei tendo de partir. Para falar a verdade, eu não queria
partir, mas minha doença não permitiu que ficasse mais por aqui.
Não fui vencida por ela. Fui ao encontro do meu marido Samuel, um
gato preto e branco que me amava muito, pai dos meus filhos e que
estava pronto para me receber.
Parti
em um sábado no fim da tarde. Os donos da casa tinham ido visitar
uma tia que também estava doente e esperei eles chegarem para dizer
até logo.
Despedir-me
jamais! Foram anos de alegria, amor e carinho vividos aqui.
E foi
com toda essa bagagem que segui em silêncio e em paz na elegância
da grande dama que sempre fui em vida.
por Natalina de Castro